sábado, 3 de setembro de 2022

Quando Desisti de Ser Trans e Meu Primeiro Beijo

 Quando eu tinha entre 3 e 7 anos, acredito que foi o período que comecei a, digamos assim, performar minha identidade de gênero. De uma forma infantil e instintiva, percebi que minha principal identificação e afinidades não eram com pessoas do sexo masculino, mas sim do  feminino. Meus modos, interesses, maneira de fazer muita das coisas, como desenhar e brincar eram também de uma forma na época considerada tipicamente feminina, se formos analisar os estereótipos de gênero mais padronizado que vigia na época. E meu pai notava isso e não gostava nada. Não permitia que eu brincasse de bonecas e, quando aprendi a desenhar e fiz minhas próprias bonecas e princesas de papel, que eu recortava para brincar e guardava cuidadosamente num saquinho transparente, ou quando aprendi com minha tia, a mesma que me ensinou alguns dos primeiros traços de desenho que depois fui aprimorando, a desenhar bonecas para vestir, desenhando com esmero elas de sutiã e calcinha e as roupinhas com abinhas que se dobravam atrás da bonecas, meu pai rasgava elas. Eu já contei isso na minha última postagem, mas volto a esse ponto pois isso me marcou muito, já que por diversas  vezes me dediquei ao trabalho de criar essas bonecas, e tentar escondê-las de meu pai, mas ele sempre acabou achando e elas sumiam. Minha mãe eu lembro que me dizia para guardar onde ele não achasse, mas esse lugar não existia. Ele fez isso tantas vezes que acabei desistindo de recortar as bonecas que desenhava para brincar. Assim, continuei a desenhar, mas então comecei a fantasiar as brincadeiras e histórias apenas na minha mente. 


Algumas vezes, quando via minhas primas, tentava brincar de bonecas com elas, mas quando os adultos me viam com uma Barbie era certo que haveria uma reprimenda e portanto não dava muito certo a brincadeira. No geral eu era uma criança bastante solitária, sem amigos, pois sofria bullying desde muito cedo e acabava ficando um pouco isolada em espaços com outras crianças estranhas. O bullying, adivinhem, era LGBTfóbico e apesar de as vezes sofrer de alguns primos isso também, no geral eles me integravam às brincadeiras. Também tenho dois irmãos, um mais velho que durante a infância era abusivo e um mais novo, com quem sempre brinquei muito. Mas no geral nessa época eu era meio solitária se não fosse pelo meu irmão. 


Também nesse período, lá pelos 6 anos, dei meu primeiro beijo. E foi num menino. Lembro que ao lado do prédio onde eu e minha família morávamos tinha uma colégio com uma pracinha no pátio da frente, com uma daquelas casinhas pequenas que a crianças consegue entrar, e eu e um menino negro, estávamos nessa pracinha brincando. Realcei o fato de o menino ser negro pois eu me sentia atraída por meninos negros. Digo atraída no sentido de me aproximar. Creio que por no endereço que morávamos anteriormente, ter sido vizinha de dois meninos irmãos negros que eram o mais próximo de amigos que tive na época, pois brincávamos juntas e as vezes eu ia na casa deles. Isso num bairro super família que vivíamos antes de eu completar 5 anos. Também notei hoje, analisando, que algumas vezes eu acabava tendo aproximação com crianças que de uma forma ou outra acabavam sofrendo algum tipo de bullying ou rejeição. Muitas vezes negros também tem lidar alguma espécie de preconceito e discriminação desde a infância, inclusive no ambiente escolar e talvez isso gerasse uma certa identificação. Digo isso pois nessa mesma época, no ano anterior se não me engano, quando estava no Jardim B, havia passado um período, que achei maravilhoso, "amiga" de um colega, também negro, que estava com catapora e que por isso ninguém queria se aproximar. Não entendam mal, não estou dizendo que eu era uma santa por isso, e nem que ficava feliz por ele estar com catapora, mas eu era isolada pela turma, ele estava sendo também, achei natural brincarmos juntos e pensei ter feito um amigo. Porém depois que ele melhorou eu lembro que um dia fez bullying comigo junto com as outras crianças e eu vi que a amizade não havia durado. Entendo que talvez tenha sido por pressão social para ser aceito, mas o fato é que fiquei muito magoada e lembro disso até hoje. Mas voltando ao beijo, um ano depois, com 6 anos, eu estava brincando com outro menino negro que parecia gostar de mim e de quem eu gostava também e lembro que nós entramos na casinha da pracinha e não sei se estávamos brincando de casinha, tipo pai e mãe ou o quê, mas acabamos dando alguns beijos selinho ali e depois atrás da casinha. A sensação foi vagamente estranha e maravilhosa. Foi aqueles beijos bem infantis mesmo, onde nos inclinamos para a frente e fazemos biquinho, mas tudo muito inocente. Lembro que tinha algo a ver com a brincadeira e que foi muito bom, só isso. Porém eu não sabia que meu irmão mais velho viu. Ele estava por perto (o prédio onde morávamos era ao lado) e estava me espionando e me disse para parar e avisou que ia contar para meu pai. A partir daí não lembro do que aconteceu logo a seguir, pois eu tinha noção de que estávamos fazendo algo secreto, escondido, talvez "errado", só não tinha noção de qual o grau da infração. Mas lembro que fiquei assustada pelo jeito que meu irmão falou e pelo menino ter ficado asssustado também. 


Acabei tendo que ir para casa, fiquei 15 dias de castigo sem poder sair para brincar e fui proibida de brincar com o menino, tipo, pra sempre. Além disso recebi uma reprimenda heteronomativa e LGBTfóbica que me ensinou que aquela era uma das infrações mais graves que poderia haver. Não me lembro se dessa vez apanhei, mas lembro que fiquei muito impactada pelo resultado de um gesto de afeto entre duas crianças. E assim e o menino com quem tive meu primeiro beijo fomos afastados para sempre sem que eu entendesse muita coisas além de que a forma como eu era e as coisas que eu sentia eram erradas. Pois apesar de não me recordar exatamente daquilo que foi dito para mim, sei que que a conversa passou pelos tópicos gênero e sexualidade (tu é um menino, menino não beija menino, essas brincadeiras não são de menino, tu tem que se comportar como menino...) e aos seis anos de idade eu fui parar numa psicóloga. Meu pai, antigamente, dizia que me colocou na psicóloga para ver o que tinha de errado comigo. Pelos motivos que citei no início, as coisas "de menina" que eu fazia. Coloco entre parênteses o de menina, pois hoje sabemos, pelo menos pelo que entendi, que não é necessariamente o gênero que define o comportamento e nem o comportamento que necessariamente define o gênero. É tudo muito subjetivo. Mas meu pai queria que ela resolvesse o que estava errado. Hoje ele diz que era para eu aprender a lidar aquilo, mas durante anos o discurso foi esse outro. Com o tempo e muita conversa ele acabou entendendo que eu era daquele jeito e pronto. Mas a verdade é que houve muitas tranquilizações, ao longo dos anos que aquilo não queria dizer que eu fosse viado ou transexual. E eu ficava sabendo sobre essas conversas deles com minha psicóloga. Não me entendam errado, a minha psicóloga era ótima, me acolhia e me permitia ser eu mesma nas consultas. Através dela aprendi a escrever histórias, costurar e finamente tive acesso uma boneca. Era a boneca de uma família de bonecos de pano padrão pequenos , do tipo que os psicólogos infantis usam, e aprendi a costurar lãs na cabeças delas para colocar cabelos coloridos, fazer tranças. Posteriormente elas me deu essa boneca e consegui  guardar ela em casa. Mas era como se pesasse sobre a "permissão", pois meu pai não rasgou ela, a promessa muda de que eu seria um menino cisgênero heterossexual. 


E foi então que lá pelos 7 anos de idade abandonei a "questão de gênero" que fervilhava na minha cabecinha infantil e entendi, frente a toda pressão, que eu tinha que ser menino. Que essa era minha única opção. E na minha cabeça nasceu uma coisa que ia me atormentar pelos 29 anos seguintes, chamada ideação suicida. Pelo menos é como vejo hoje, aos trinta e oito anos, após aos 36 ter conseguido me libertar do monte de amarras que me prendiam e ter resolvido remexer a questão de gênero, ter me assumido como uma menina transgênero não-binária, adotado exclusivamente o pronome feminino e roupas femininas e estar cada dia mais descobrindo minha feminilidade. E isso me dá forças. Durantes anos tive tentativas de acabar com tudo. Mas agora estou libertando a menina que esteve aprisionada por anos numa torre dentro de mim, e isso me fortalece para enfrentar as coisas com um olhar diferente, um olhar de esperança, de alguém que está realmente em busca da plenitude, pois antes, como eu poderia viver plenamente, ser plena, se nem minha real identidade de gênero eu conseguia viver? Claro que ainda tenho momentos de dúvida, depressão e tristeza. Continuo lutando contra outras questões. E as vezes tem questões relativas a transgeneridade, como a transfobia. Quer dizer na verdade, nada muito diferente do que eu já enfrentava, pois sempre sofri LGBTfobia pelo meu jeito pura e simplesmente , nunca por demonstrações de afeto com rapazes ou algo assim. Portanto já era o mesmo tipo de masculinidade tóxica e ódio que jogavam contra mim. Mas agora eu não tento mais performar masculinidade. Eu sou feminina e sinto-me mais forte e feliz para lutar contra o ódio e preconceito. E para me manter bem o máximo possível frente a eles. E a ideação suicida ficou para trás, acredito que para sempre, que a Divindade me ajude para que seja assim. E hoje, meu pai, após 2 anos se negando a aceitar o fato e lutando contra com todas a forças, parece ter entendido que tem uma filha, e que de ela poder ser isso, uma menina, depende a felicidade dela. E ele e minha mãe pouco a pouco a pouco estão aprendendo a usar o nome que escolhi e o pronome feminino para se referir a mim. O nome inclusive eu retifiquei na certidão de nascimento e em todos meus documentos, assim como consegui colocar na certidão de nascimento o gênero como não-binário. Escrevo esse texto para me sentir melhor, compartilhar e quem sabe ajudar alguém que esteja precisando. Fico por aqui. Beijos e obrigada aos que lerem.

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