É tão estranho.
Se bem que sim, é estranho, mas acredito que talvez irônico seja
uma palavra melhor. É incrivelmente irônico que tenha tanta gente
com doenças que atacam o aspecto físico, sejam terminais,
crônicas, algumas extremamente debilitantes, outras autoimunes,
pessoas buscando por aí ou se submetendo a tratamentos para
continuarem vivos, gente lutando com todas as forças, resistindo, se
negando a deixar que as limitações que a vida impõe a elas impeçam
que tenham uma vida normal. Gente que muitas vezes, independente de
do quanto lutaram, tem que encarar e aceitar a morte.
E que, enquanto
isso, tenha eu. Alguém que mais de uma vez buscou a morte, que mais
de uma vez uma vez desistiu de tudo. Que mais de uma vez tomou
overdoses ou então grande quantidades de medicamentos, e que a morte
rejeitou uma, e outra e outra e outra e outra e outra vez. De acordo
com os cálculos dos meus pais foram seis vezes. Eu, para ser
sincero, já nem lembro mais quantas foram. Talvez por ter feito
sessões de ECT que me deixaram lacunas horríveis em minhas
memórias, ainda que, lentamente, esteja tudo me voltando agora, que
nem diz na música da Celine Dion. Mas, na realidade nem tudo está
voltando. Nem todas lembranças voltam com todos os contornos
definidos. Algumas lacunas permanecem, ainda que eu não saiba por
quais critérios são escolhidas as que ficam comigo e as que vão
para o limbo do esquecimento. Ou se as que vão, voltarão algum dia.
E a verdade é que
não existe esse motivo plausível para que os outros compreendam,
essa razão concreta para eu querer tanta assim morrer. Há GATILHOS,
mas não uma verdadeira motivação que eles considerem palpável,
crível. Óbvio que o sofrimento existe, mas ele existe também para
tantas outras pessoas... E, já que meu sofrimento em si é uma
doença, ainda que invisível aos olhos, ela só se manifesta
fisicamente quando eu provoco essa manifestação. Quando eu me corto
ou tomo uma quantidade absurda de remédios, e observo, como se o
mundo estivesse em câmera lenta, o sofrimento nos olhos de outras
pessoas por quê, naquele instante, ela realmente veem meu
sofrimento. Ele está estampado em mim e eles não tem como negar que
há algo de errado.
Claro que sempre
tem aqueles que desejam que eu tivesse conseguido meu objetivo com a
overdose, ou que os cortes tivessem sido mais fundos ou no sentido
certo para que eu sangrasse até morrer.
Eles não entendem.
São demasiadamente obtusos. Existe dentro mim mais de uma entidade:
Existe a que está aparentemente sob controle, ainda que seja “só
por hoje”, que é a dependência química; Tem também e doença
que mencionei antes, que me faz querer morrer, querer desistir de
tudo, me machucar, sumir, deixar de existir completamente, tudo para
acabar com o sofrimento, o mesmo sofrimento que citei, que os outros
não veem ou entendem; E, por fim, tem eu, que lutei boa parte da
minha vida contra a primeira, e praticamente a vida inteira contra a
outra.
Uma luta extramente
inglória e ingrata, pois quando venço essa luta, acham não fiz
mais do que minha obrigação em continuar vivo. E nas vezes que o
sofrimento chega a um nível insuportável, e acabo sendo nocauteado
pela doença, desistindo, me deixando guiar por ela e me machucando
mais do que apenas emocionalmente, as pessoas me julgam e condenam.
Se eu morresse, diriam que fui fraco. Mas como mais uma vez
sobrevivi, por eu seguir vivo, dizem que sou sem vergonha, vagabundo,
manipulador, fraco, também, e que eu não queria morrer. Estão
certos, em parte. EU não quero, mas as outras entidades que povoam
meu interior, pensam diferente. A dor, a vergonha, minha autoestima
destruída por todos os anos de ódio gratuito que jogaram,
impuseram, enfiaram em mim, e também minha herança genética,
pensam diferente. Sei que deveria me fortalecer com todos esses anos
de ódio, exclusão, humilhações, e torturas psicológicas, e me
fortaleço, mas não cheguei a um nível onde joguem pedras em mim e
não sinta a dor. Cada uma delas me atingem e sinto onde me
atingiram, e sangro. Sim, eu tento fugir, mas aqueles que jogam as
pedras estão em um círculo em torno de mim. Portanto, acabo, mesmo
que não queira morrer, deixando que a doença guie minhas mãos, as
quais pegam os remédios em um punhado, depois enchem um copo de água
para eu beber e continue, punhado após punhado, até não haver mais
nenhum. Até chegar ao nível tóxico. Depois fique uma quase uma
hora chorando na escuridão, temendo a chegada do Anjo Negro que irá
me levar uma escuridão maior ainda, rezando a Deus para que Deus, ou
outro lado, ou céu, ou inferno, para que nada disso exista. Que eu
apenas me desfaça lentamente até não haver mais nada de dor, de
medo, de ódio, de sofrimento. Até não haver mais nada de mim para
ser julgado pelo mundo.
Mas não é
irônico? EU fiquei aqui, mais uma vez, aparentemente sem sequelas,
enquanto pessoas com doenças que destroem seus corpos, pessoas que
lutam contra com todas as forças para ficar, que se agarram à vida
com tudo que tem, acabam perecendo, sem chance, sem possibilidade de
que os esforços delas resultassem em algo. Talvez, se eu tentasse de
novo, não fosse assim. Mas não é o que eu quero. TEM QUE HAVER UM
SENTIDO. Tem que haver um PODER SUPERIOR. Seja Deus, Deusa ou que
nome as pessoas derem a ele. Tem que haver algum sentido para tantos
partirem e eu estar aqui.
A verdade é que
após cerca de quarenta minuto minutos sentado no sofá, no escuro,
tentei pesquisar no Google para confirmar que a dose de medicamentos
que tomei era letal ou tóxica, enfim, se ia me matar. Eu sabia que
era, mas havia algo de errado. Eu estava vivo. Para minha surpresa,
quando fiz a pesquisa, obtive o resultados, mas apareceu no topo da
página, um telefone, o 188, Centro de Valorização da Vida. E o meu
eu saudável, desesperado com o que meu eu doente havia feito, ligou
e pediu ajuda, tendo sido salvo por um anjo em forma humana, com quem
provavelmente jamais falarei novamente, mas que me escutou, não me
julgou, me orientou e que depois de me conduzir de volta ao mundo dos
vivos que querem viver, com sua delicadeza, empatia e sensibilidade,
me orientou como proceder para não acabar morrendo. E continuou a me
ouvir, me sondando sobre a quem eu podia recorrer, até que no fim
resolvemos o que fazer e liguei para a pessoa que foi na minha casa e
me levou ao Pronto Socorro, onde fiquei por sete dias.
Faz oito dias que
saí de lá e só consigo até agora ver a ironia de tudo isso. O
sentido ainda não está claro. Não sei se um dia estará. Mas quero
buscá-lo. Tem que haver um, ainda que talvez eu só o conheça
quando partir desse mundo. Sim, falo de quando eu morrer. Não é o
que quero agora. Morrer. Quem sabe um dia, provavelmente, mas, se
tudo der certo, não será por minhas próprias mãos.
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